Há poucos dias assistia a um episódio
de uma das minhas séries favoritas que debatia o tema da escravatura
sexual, do tráfico de mulheres desde tenra idade para usufruto de
homens ricos e perturbados, sem escrúpulos ou decência.
Nesse contexto fazia-me pensar no quão
pouco a sociedade evoluiu em termos de responsabilidade para com as
suas crianças, adolescentes indefesas, mulheres subjugadas e
enganadas por promessas vãs; o quão limitados continuam os meios de
justiça e defesa e o quão retrógrado e sexista se mantém o
pensamento do homem. Tentar entender o que está por detrás da
necessidade de abuso, humilhação e degradação da mulher em
qualquer idade é de extrema dificuldade e nem sequer deveria ser
algo existente num ser dotado de inteligência, de racionalidade, de
educação.
A cada ano mais mulheres são aliciadas
via internet, a partir de locais rotineiros como suas escolas, cafés
de bairro ou centros comerciais, a partir de anúncios falsos
apelando a uma carreira de manequim ou trabalhos sazonais bem
remunerados, pelo deslumbramento de uma vida num país europeu e
glamoroso; a cada dia aumenta o número de raparigas violadas na sua
faculdade, raptadas em plena luz do dia, por aquele que se fez passar
por jovem num perfil falso de uma das variadas redes sociais, aumenta
a pressão social por carreiras milionárias, pela beleza imaculada e
perfeição de corpos plásticos e flawless.
O tráfico humano e/ou sexual não
é um fenómeno recente e, por isso, mais difícil se torna perceber de
que modo têm os governos sido brandos na justiça às vítimas,
parcos nos meios de combate e quase cegos na tentativa de erradicação
de tal psicopatia global e comportamentos egocêntricos e destrutivos
maioritariamente masculinos. Mas a mim, pessoalmente, há um fenómeno
dentro deste “mercado da carne” que ainda me perturba mais, se é
que é possível, quando percebo que no seio das organizações
mafiosas controladoras deste ignóbil abuso estão diversas mulheres
e, muitas delas, com cargos de comando e violência mais acérrimas que
muitos homens.
Seria de esperar que uma mulher livre,
adulta, inteligente, independente, muitas vezes casada e mãe de
outras mulheres, fosse acérrima defensora dos seus direitos enquanto
mulher e cidadã e protegesse a sua própria prole como o fazem as
fêmeas na natureza. Seria de crer que neste mundo obscuro não
existissem mulheres que se gratificam com a humilhação das suas
demais, que as recrutam e aliciam com falsas promessas, que as
maltratam e agrilhoam para que sejam elas mesmas premiadas e
consideradas pelos seus pares de sexo oposto. Se já é atroz este
comportamento por parte do homem, excepção feita aos também
vítimas do mercado de escravatura e abuso laboral ou sexual e aos
que lutam por erradicar tal mal, criando campanhas massivas apoiadas
por figuras reconhecidas do cinema, música, artes, mais me custa
conceber a mulher por detrás de tais atitudes contra a sua natureza
dita protectora e geradora de vida.
Segundo Salil Shetty, o
secretário-geral da organização Amnistia Internacional: “É
inacreditável que no século XXI alguns países ainda tolerem
o casamento infantil e o estupro marital enquanto
outros proíbem aborto, sexo fora do casamento e união entre pessoas
do mesmo sexo, que são até puníveis com pena de morte”. Muitas
destas prácticas, que vão para além das organizações criminosas,
são perpetuadas pelas famílias e consagradas como tradição por
uma grande maioria de países ‘subdesenvolvidos’ e do
médio-oriente onde a religião se sobrepõe, por vezes, às leis e
constituição de sociedades onde o valor da vida humana é baixo e o
das mulheres quase nulo.
É preocupante e assustador que
haja tanta dificuldade, e muitas vezes falta de interesse dos que
governam, em criar leis mais condizentes com este tipo de crime, em
obter justiça mais célere e compensatória para as vítimas de
qualquer sexo ou idade, em preservar a intimidade e liberdade
individual de cada ser humano; o tráfico humano estende-se como um
polvo por todos os países, por todas as sociedades, é transversal a
qualquer ideologia, religião, política e é muito provavelmente das
situações mais complexas e difíceis de erradicação,
principalmente quando aqueles que o podem travar são cúmplices
directa ou indirectamente destas práticas atrozes que atentam contra
o mais básico valor humano: a liberdade.
Num mundo que, continuamente, gera
diferenças de classes, que celebra o sucesso desleal e competitivo,
que denigre seres apenas por considera-los diferentes do dito normal,
que premeia a beleza sintética e os corpos criados em ginásios e
laboratórios de estética, que prende e silencia as vozes contrárias
em sistemas absolutistas, num mundo onde não se é livre quando se
nasce mulher, onde o trabalho infantil é ainda uma realidade "escondida" para enriquecimento de umas quantas elites da moda,
do futebol, da publicidade, num mundo onde cada vez é mais difícil
ser David (já não se destrona Golias), num mundo assim há cada dia
menos espaço para o sonho e mais tapetes estendidos para o inferno.
Porque todos os dias há uma criança
abusada, uma adolescente raptada, uma mulher violada, um homem
escravizado, um menino ilegalmente adoptado, um bebé vendido, uma
jovem agredida psicologicamente…todos os dias milhares de pessoas,
na sua maioria mulheres, vivem o inferno muito antes da sua morte.
E são dados divulgados pela Amnistia
Internacional que se tornam preocupantes, que me deixam a pensar no
que nos temos tornado enquanto seres humanos pensantes e evoluídos,
ou assim parecemos:
*150 milhões de raparigas com idade
inferior a 18 anos já foram agredidas sexualmente pelo menos uma
vez, e em grande parte por membros familiares.
*142 milhões de raparigas estão em condições propensas para casarem com idade menor até 2020 (dados desde 2011).
*142 milhões de raparigas estão em condições propensas para casarem com idade menor até 2020 (dados desde 2011).
*14 milhões de adolescentes dão à
luz todos os anos, sendo a maioria das gravidezes resultado de sexo
forçado ou indesejadas.
*215 milhões de mulheres não têm acesso a métodos contraceptivos, mesmo as que querem evitar uma gravidez.
*A actividade sexual entre pessoas do mesmo sexo é ilegal em pelo menos 76 países, dos quais 36 em África, e punida com pena de morte em vários estados Árabes.
*215 milhões de mulheres não têm acesso a métodos contraceptivos, mesmo as que querem evitar uma gravidez.
*A actividade sexual entre pessoas do mesmo sexo é ilegal em pelo menos 76 países, dos quais 36 em África, e punida com pena de morte em vários estados Árabes.
E por tudo isto, enquanto assistia na
ficção a algo tão real, me revolta a contínua situação de
milhares de adolescentes ludibriadas por falsas promessas no mundo da
internet onde predadores se aproveitam de suas carências, de
autoestimas baixas, do factor crítico de uma idade problemática e
insegura, das indefesas mentes que se deixam iludir por oportunidades
no mundo da moda, do espectáculo e das próprias relações
familiares cada vez mais silenciosas e distantes.
É certo que a grande maioria dos pais
destas jovens se preocupa e tenta alertá-las do perigo, muitos deles
têm até relações abertas e francas com suas filhas mas sabemos
que cada dia se torna mais difícil a proximidade entre gerações e
muitos dos progenitores não sabem como funcionar com tanta
informação do mundo virtual ou até proteger de ameaças tantas
vezes veladas ou vindas de pessoas conhecidas, como familiares,
amigos ou vizinhos.
A sociedade está permeável à prática
de crimes cibernéticos, à exploração dos medos e inseguranças
humanas, à fácil mentira e criação de fantasias, e torna-se uma
luta hercúlea contra as mafias globais, contra a descaracterização
do que é o bem e até contra a opressão da religião que em
muitas civilizações se sobrepões à lei ou à justiça; porque
quando somos privados de informação, quando somos agrilhoados no
pensamento e quando nos retiram qualquer dignidade, a consequência
de uma vida de abusos e violência parece tornar-se a única saída.
Resta àqueles que podem modificar
leis, que podem instaurar práticas de protecção, que podem e devem
investir na educação e aplicação dos direitos básicos do Homem e
a todos os lutadores no seio desta causa global, continuar a acreditar
que um dia os dados estatísticos serão diferentes e ser mulher não
será per se condição para sobreviver ou viver o inferno in loco.
por Nadya Prazeres
por Nadya Prazeres
Triste realidade, ate quando teremos que levar com estas injusticas infelizes? :(
ResponderEliminarBjinhosss e parabens pelo excelente texto
https://matildeferreira.co.uk/